A Música para piano na Madeira
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O Piano nos Convívios Sociais e Domésticos

(1820-1945)

Paulo Esteireiro
Centro de Investigação e Documentação do
Gabinete Coordenador de Educação Artística


 

O piano moderno foi inventado na transição do século XVII para o XVIII em Itália, por Bartolomeo Cristofori, empregado da corte de Ferdinando de Médici em Florença. Apesar de haver quem aponte o ano de 1698, como o ano em que o italiano construiu o seu primeiro piano, é em 1700, num inventário da família Médici, que encontramos referências à existência de um instrumento de tecla com capacidade para tocar piano e forte (Ripin, 1988: 3-8).

Apesar de ter sido criado no início do século XVIII e de já existir repertório para piano, pelo menos desde 1732, apenas na primeira metade do século XIX o piano destrona completamente o cravo, sendo a música para este instrumento praticamente banida a partir deste período (Winter, 1988: 107). É certo que desde o terceiro quartel do século XVIII o piano ocupava um lugar especial na vida musical profissional e doméstica em alguns países europeus (Ripin, 1988: 1), mas demorou cerca de 100 anos desde as primeiras invenções de Cristofori, até o piano se tornar um elemento central do quotidiano das famílias da burguesia europeias.

Portugal está entre as primeiras cortes a receber o novo instrumento. A invenção do piano decorre num período de italianização da música portuguesa, no reinado de D. João V e de D. Maria Ana de Áustria, uma conceituada intérprete musical. Este monarca contratou em Itália diversos cantores e músicos, entre os quais Domenico Scarlatti, compositor da corte e professor de Maria Bárbara, considerada pela historiografia como uma grande intérprete de instrumentos de tecla. A primeira obra escrita para piano – as Sonate da Cembalo di Piano e Forte de Lodovico Giustini - tem relações directas com Portugal e Brasil, tendo sido dedicadas por João de Seixas da Fonseca Borges, um eclesiástico nascido no Rio de Janeiro, ao Infante António de Bragança, irmão de D. João V e consagrado cravista, que esteve em Itália em 1714, data em que foram estabelecidos os contactos com Domenico Scarlatti para a sua fixação em Portugal (Doderer, 2002: 9-10).

No entanto, o piano começou a sua difusão de forma massiva em Lisboa apenas no primeiro quartel do século XIX. Segundo relatos deste período, entre 1809 e 1821, a cidade de Lisboa passou de uma situação em que tinha cerca de 20 pianos para aproximadamente 500 (Brito e Cranmer, 1990: 50). Tal como no resto da Europa, em Lisboa o piano não destronou imediatamente o cravo, sendo muito normal encontrarmos ainda muitos compositores a compor para este instrumento.

Na Madeira desconhece-se ainda com exactidão quando terá entrado o piano no quotidiano das famílias madeirenses, havendo relatos que indicam que pelo menos desde a década de 1820 já deveria haver alguns pianos no Funchal. Por exemplo, o pianista e compositor Duarte Joaquim dos Santos, durante a sua primeira estadia na Madeira em 1827, tocou um Concerto para piano e, no mesmo ano, o músico francês Carlos Guigou dava aulas de piano no Funchal (Carita e Mello, 1988: 35).

Ao longo do século XIX o piano foi ganhando progressivamente espaço na cultura madeirense, sendo vários os documentos que confirmam a presença deste instrumento nos convívios sociais e no quotidiano doméstico. Por exemplo, nos relatos dos estrangeiros que visitavam a Madeira, é comum encontrarmos referências à prática do piano no Funchal, pelo menos desde o final da década de 1830, altura em que o autor americano Fitch Taylor, no seu livro The Flag Ship or a Voyage around the World in the United States Frigate Columbia, refere ter ouvido um momento musical com piano na Igreja de Santa Clara junto ao altar.

A piano-forte also occupied a position near the altar; and the nuns, some of them were standing and others sitting upon the carpet […]. A harp, also, stood at the end of the piano-forte; and now a lady in full and rather gaudy dress, but tasteful, advanced to the harp, and music was expected» (Taylor, 1840: 72).

(«Um piano-forte ocupava uma posição perto do altar; algumas freiras estavam em pé e outras sentada sobre um tapete [...]. Uma harpa estava ao pé do piano-forte; e, então, uma senhora com um vestido comprido, não de mau gosto, mas elegante, avançou para a harpa; a música estava prestes a iniciar.»)

Poucos anos depois, por volta de 1850, outra visitante estrangeira, a britânica Lady Emmeline Stuart Wortley fica impressionada com a música para piano tocada numa casa do Funchal, referindo que os habitantes tocavam de forma «muito bela» (Wortley, 1854: 257). Este bom nível de execução de alguns pianistas funchalenses é confirmado também por outro visitante, o americano Robert Winter, que escrevendo também em meados do século XIX, refere existirem vários executantes admiráveis de piano na Madeira, entre os quais salienta um compositor que deverá muito provavelmente ser ou Ricardo Porfírio de Afonseca ou Duarte Joaquim dos Santos:

«There are several excellent performers on the piano in the city; among others, a private gentleman of the highest musical taste and genius, who not only executes admirably, but has written a number of pieces which would do honor to almost any composer, and on which the inhabitants justly pride themselves» (Winter, 1850: 73).

(«Existem excelentes executantes de piano na cidade; entre estes, destaca-se um cavalheiro com o excelente gosto musical e génio, que não só executa admiravelmente, mas que também compõe uma série de peças que honraria quase qualquer compositor, e do qual os próprios habitantes madeirenses têm orgulho.»)

As referências à prática do piano nas casas madeirenses continuam ao longo da segunda metade do século XIX. O britânico Dennis Dembleton refere que o som de piano se ouve nas casa das famílias mais respeitadas do Funchal na década de 80 (Dembleton, 1882:42) e poucos anos depois, em 1891, o visitante lisboeta João Augusto Martins refere que as senhoras madeirenses «sabem falar as línguas e sabem dedilhar ao piano como qualquer das nossas burguesas da Baixa [de Lisboa] (Nascimento, 1950: 68), o que comprova que a prática do piano era levada muito a sério na Madeira e era uma fonte de estatuto para as famílias.

Apesar da questão do estatuto ser importante para o sucesso do piano entre as classes mais abastadas, há que não esquecer que o piano era acima de tudo uma fonte de animação e de divertimento familiar. Uma prova disso mesmo encontramos num texto do conceituado autor madeirense Alberto Artur Sarmento que, ao descrever as suas recordações de festas de Natal familiares na sua infância, afirma que se tocava piano a quatro mãos e se dançava ao som deste instrumento.

«Jogava-se, recitava-se, tocava-se. O piano, por vezes matracado a solo ou a 4 mãos e mais um pé esquecido no pedal, espargia sobrepostas ondas em harmonias de fanfarra campestre e uma melodia engasgada.

Bravos, aplausos, palmas, mais saudações….

Depois, dansar, bailar. A mobília era empurrada contra as paredes, donde muitos retratos em cartão, amarelecidos e sem aro, se despenhavam da saliência do alizar, naquela confussão preparatória. Os velhotes e velhotas dansavam nesse dia, apenas, a abertura duma contradansa cerimoniosa, evocadora duma mocidade que se escoou […]. A mocidade toma logo conta da sala, na efervescente turbulência da valsa a 2 tempos, em rodopio; da polca pulada, saltitante; da mazurca varredora, espanejando o pé» (Sarmento, 1951: 1).»

Mas o piano também saiu das portas das casas madeirenses. Frequentemente, este instrumento era utilizado nos convívios sociais havendo referências à sua utilização em jantares, saraus de beneficiência ou mesmo em concertos no Teatro. Em 1853, Isabella de França descreve uma festa em que uma senhora alemã cantou uma ária acompanhada do marido (França, 1970: 170-1). Em 1860, a Arquiduquesa Maria Carlota, da Bélgica, descreve um convívio em que o Governador acompanha ao piano uma jovem cantora que interpretou várias árias (Nascimento, 1951: 99); e, ainda na década de 60, há notícias de vários saraus de beneficência em que o piano ocupa um lugar central (F. M., 1949: 4).

O piano manteve o seu lugar central nos divertimentos domésticos e sociais madeirenses pelo menos até à década de 30 do século XX, altura em que a difusão de um conjunto de novas tecnologias – rádio, gramofone e o cinema – esteve perto de banir o piano da educação e dos entretenimentos familiares. O declínio do culto da música devido a estes novos concorrentes de respeito na área do entretenimento encontra-se bem explícito num texto de Luiz Peter Clode, escrito em 1949, onde o autor descreve as motivações para a fundação da Sociedade de Concertos da Madeira seis anos antes:

«De 1930 a 1943, posso dizer, sem errar, que aos rapazes e raparigas dos 15 aos 18 anos pouco interessava a Política do Espírito. A sua máxima preocupação era o aperfeiçoamento dos gramofones, as actrizes e os actores de cinema, rádiotelefonia, o “jazz” e o gosto exagerado pelo futebol. Era infelizmente esta a mentalidade daquela época, embora na Madeira, no tempo dos nossos avós existisse o verdadeiro sentido da arte, cultivando-se a música, com grande entusiasmo (Clode, 1949: 1).»

Houve uma resistência cultural que permitiu a sobrevivência da prática do piano, sendo a fundação da Academia de Música em 1945 a maior tentativa de combater o abandono da aprendizagem musical na Madeira. Devido à intervenção atempada desta escola de música, antepassada do Conservatório e do Gabinete Coordenador de Educação Artística, o piano sobreviveu às novas tecnologias do início do século XX na Madeira e manteve-se parte integrante da educação de muitos jovens madeirenses. Apesar disso, a época dourada do piano como principal fonte de divertimento familiar e de prestígio social da burguesia ascendente tinha chegado ao fim.


 

BIBLIOGRAFIA CITADA

BOWDICH, Thomas Edward (1825). Excursions in Madeira and Porto Santo, During the Autumn of 1823, London, George B. Whittaker.

BRITO, Manuel Carlos de e CRANMER, David (1990). Crónicas da Vida Musical Portuguesa na primeira metade do século XIX. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Modea.

CARITA, Rui e MELLO, Luís de Sousa (1988). 100 Anos do Teatro Municipal Baltazar Dias, Funchal.

CLODE, Luís Peter (1949). «A Verdadeira História da Sociedade de Concertos da Madeira» em Das Artes e da História da Madeira, Suplemento ao n.º 4995 de «O Jornal» (6 de Março de 1949).

DEMBLETON, Dennis (1882).  A Visit to Madeira in the Winter 1880-81. London: J. & A. Churchill.

DODERER, Gerhard, ed. (2002). Sonate da Cimbalo di Piano e Forte -  Lodovico Giustini di Pistoia, fac-simile da edição de 1732 – Florença, Academia Brasileira de Música.

F.M. (1949). «Um Sarau Musical, em 1866, no Funchal» em Das Artes e da História da Madeira,  Suplemento ao N.º 5106 de «O Jornal» (23 de Julho de 1949).

FRANÇA, Isabella de (1970). Jornal de Uma Visita à Madeira e a Portugal (1853-1854). Funchal, Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal.

NASCIMENTO, João Cabral do (1950). Arquivo Histórico da Madeira, Vol. VIII. Funchal: Câmara Municipal.
 
NASCIMENTO, João Cabral do (1951). Arquivo Histórico da Madeira, Vol. IX. Funchal: Câmara Municipal.

RIPIN, Edwin M. (1988). «History of the Piano» em The Piano. New York: W. W. Norton.

SARMENTO, Alberto Artur (1951). «O Natal na Madeira quando eu era estudante» em Das Artes e da História da Madeira, Vol. II, N.º 9, (Novembro-Dezembro de 1951). Funchal: Sociedade de Concertos da Madeira, pp. 1-4.

SILVA, Fernando Augusto da Silva e Menezes, Carlos Azevedo (1984). Elucidário Madeirense, 3 vols, Funchal, Secretaria Regional do Turismo e Cultura,

TAYLOR, Fitch W. (1840). The Flag Ship or a Voyage around the World in the United States Frigate Columbia, New-York, Edward Stanford.

WINTER, Robert (1988). «Piano Music» em The Piano. New York: W. W. Norton.

WORTLEY, Lady Emmeline Stuart (1854). A Visit to Portugal and Madeira, London, Chapman and Hall.